terça-feira, 26 de novembro de 2013

Suspensão com prazo de validade

“Se tivesse trazido o caderno que me destes, Larissa, poderia estreiá-lo hoje. Coloco-me no quarto de um albergue, jogada na cama enquanto a noite de sábado de muitos acontece do outro lado da minha janela, pelas ruas boêmias tão próximas; mas na verdade escrevo por antecipação – antecipação não, este é o momento exato e mais apropriado para o registro dessas palavras marcadas um tanto às cegas, enquanto finjo assistir a um filme finlandês em um cinema alternativo, nos fundos de uma pequena galeria nesta cidade que não é a minha.
É a primeira vez que venho a um cinema sozinha. O filme, nesse momento, é o que menos me importa. É o estar, o ver, ouvir, sentir, que me interessam nesse dia tão à parte, tão distante da minha rotineira realidade. É nestes momentos, em que me encontro sozinha e liberta, em um lugar até então desconhecido, mas com o qual aos poucos me familiarizo, que reforço minha certeza de que viajar é, para a mente, a experiência mais saudável que existe: mostra que a vida é muito mais do que aquilo que se apresenta no nosso dia-a-dia; que é possível se desligar, mesmo que temporariamente, das velhas imposições sempre iniciadas com as palavras ‘tem que...’.
Essa gostosa suspensão daquilo a que nos sujeitamos na cidade em que vivemos, ao nos colocarmos no espaço completamente novo, é imprescindível para a sanidade. Por mais que este meu ato de escrever sem enxergar minhas linhas, numa sala escura de cinema quase vazia, possa parecer insano, visto a olho nu.
Pouco me importa agora. Só torço para que eu não esteja atropelando minhas próprias palavras neste irreverente jogo de memória, concentração e equilíbrio caligráfico que me propus.
Talvez passe a limpo este texto para o seu (meu) caderno de impressões de viagens, Larissa – isso se eu conseguir entendê-las sob a luz acesa, assim que o filme terminar...”.

Porto Alegre, 05 de junho de 2010.

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