quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Carta para o meu pai

Sabe, pai, ter te visto assim guardião da casa, ferido, buscando o reforço das trancas, uma fechadura nova, te virando com as soluções emergenciais meio desencontradas, a aflição nos teus movimentos, me deu uma dorzinha no peito. Vim do centro trazendo bolo para consolo das mulheres, sei que você não se importa com bolo, e sim, perdeu até a fome, uma xícara de café preto pra manter a fé e só. Depois te convidei pra ir à missa, porque fazia três anos que tua mãe faleceu e uma de tuas sobrinhas estava indo levar o nome dela para o padre rezar. A vó gostava muito de rezar, sabes disso, no canto dela, domingo de manhã, assistindo TV no quarto que hoje é sala de corte, e minha mãe está lá enquanto te convido pra missa. Você escutou mas não deu uma resposta e continuou com a fechadura, a corrente, e os rastros da obra que incomodaram um pouco a minha irmã que ainda recebia clientes. Eu ia à pé, porque queria mesmo ir à missa e pensar um pouco na vó, que tinha partido há três anos e que fazia tanto parte daquela casa onde na última noite soou o alarme de segurança e lhes tirou o sono. Às dez para as sete você desceu para tomar um banho rápido e vestir calça e sapatos para me acompanhar porque apesar de tudo tem respeito à casa de Deus ou às convenções humanas que fariam olhos virarem atravessados se não se trocasse. Ir à missa era como se conectar um pouco com a vó, fazer o que ela gostaria de nós, porque nem eu nem você nos importávamos muito com as anedotas e os versos que vinham do altar. Tu exausto, tendo passado a noite em claro, cuidando da porta arrombada e depois do vento e da chuva, e com uma dor na coluna (que nessa semana não melhorou porque você não teve tempo de ir à nenhuma sessão de fisioterapia, porque apesar de estar aposentado há sempre algo por fazer ou minha mãe precisando de você, ou o pedreiro necessitando de ajuda na reforma, problemas com o táxi e então o arrombamento da última madrugada), chegamos atrasados por uma porta lateral e rimos juntos quando ouvimos que o padre falava naquele exato momento sobre um ladrão que arrombava a casa, e você olhava pra mim entre risos dizendo que tinha ido ali pra descansar um pouco a mente e é logo sobre isso que o padre vem lhe falar, e pensei que estes risos já serviam pra aliviar um pouco o peso daquele dia. Nos sentamos, ajoelhamos, levantamos, conforme pedia o padre, e eu não prestava muita atenção no que ele dizia, pensava naquele altar, no corredor da minha primeira comunhão, em toda a crença e desventuras dos homens e buscava estar um pouco com a minha vó, tua mãe, que povoava teus pensamentos também, enquanto o padre anunciava o nome dela para a reza, sobrenome Machado, mas o que importa – a alma não tem mais nome. Desejei que ela estivesse bem e que passasse boas energias para vocês na casa que já foi dela e onde minha mãe hoje cuida do jardim e nesta manhã tirou fotos das flores e enviou para a família, que a vó algum dia plantou. Quis que essa proteção viesse de um amor mais forte que tudo. E desejei também que o rapaz que veio nesta madrugada tirar o sono dos meus encontrasse alguma forma de Deus ou sei lá que sentido pra que ele não precisasse mais arrombar a porta dos outros pra seguir vivendo. Na saída da igreja, tu insistiu em me levar até em casa, do outro lado da ponte, mesmo moído naquele início de noite, que agora descia sobre ti mais leve. Eu podia muito bem ir de ônibus, mas você quis me levar e eu acho que de certa forma era para prolongar o sentimento de leveza, poder atravessar a ponte comigo e adiar o cansaço e os últimos afazeres que ainda teria de tomar conta antes de dormir ou tentar. Tu falou mais um pouco sobre aquele dia longo, enquanto a rádio FM acalentava a nossa rota, e me perguntou sobre como andava minha vida. Respondi que bem, comentei sobre estar me organizando pra seleção do mestrado, algo que em sinceridade pouco me importava mas pensei ser o mais adequado a dizer, e então contei que tinha feito uma aula de dança de salão na noite passada, para experimentar. Você ficou contente com isso, porque dançar era importante, um aprendizado pra se levar pra vida. Fiquei pensando no meu dia-a-dia, meio levado pela dança das coisas e pela esperança, e nos seus tomados pelo cansaço. Nos despedimos e eu desejei que você, a mãe e minha irmã tivessem uma noite tranquila. Enquanto subia as escadas, fiquei te imaginando no retorno à casa, feliz por tua filha estar aprendendo a dançar, pensando nos bailes da tua juventude, e então na tua mãe, no nosso amor que pessoa ou adversidade nenhuma jamais conseguirá arrombar. Boa noite, meu pai, minha família, fiquem bem.