sábado, 30 de novembro de 2013

Silêncios


Depois que a porta bate, vem o silêncio perturbador. O silêncio perturba porque cede a vez para o barulho, se real, ensurdecedor, dos pensamentos latejantes daquela mente que ficou do lado de dentro. Ela havia gritado com a maior força que tinha para que o outro fosse embora. E assim ele o fez, pela porta da frente. Porta que se encontra agora destrancada, separando com fragilidade o mundo de dentro do mundo de fora. Ela não será trancada – não agora. Não será porque a mente que lateja sente medo de que, se trancar a porta, acabará definitivamente sozinha. Deixe aberta. Assim de repente o outro chega, após dar meia-volta e, com um simples giro na maçaneta, rompe aquele silêncio indesejado. Anda, que não aguento mais. Mas o silêncio persiste, ao mesmo tempo em que o barulho de coisa estourando e explodindo ecoa dentro da mente. Não era pra ser assim. O bom-senso havia fugido na última hora e lhe abandonado quando mais precisava. Pára de andar, senta, descansa, silencia. Mas a porta está ainda destrancada. Dizem que não é seguro lá fora, mas aqui dentro é menos ainda. Volta, não quero essa solidão, não. Um som curto e próximo se ouve. Um miado. O gato. Tu ouviste os meus gritos, gato? Ouça! Ouça o caos aqui dentro! A porta destrancou! Ele foi embora! Estás ouvindo? Mas o gato ouve mais além, ele vê através. A porta não lhe interessa, e o silêncio para ele é melodia. A mente grita, mas o gato não ouve. Ele se torna parte do silêncio. Não há, então, nada mais a fazer além de trancar a porta. E no cenário fechado, só há um gato, estático, e um corpo, o seu próprio corpo, jogado no chão. Silencia também, meu bem, silencia...

(2008)

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Suspensão com prazo de validade

“Se tivesse trazido o caderno que me destes, Larissa, poderia estreiá-lo hoje. Coloco-me no quarto de um albergue, jogada na cama enquanto a noite de sábado de muitos acontece do outro lado da minha janela, pelas ruas boêmias tão próximas; mas na verdade escrevo por antecipação – antecipação não, este é o momento exato e mais apropriado para o registro dessas palavras marcadas um tanto às cegas, enquanto finjo assistir a um filme finlandês em um cinema alternativo, nos fundos de uma pequena galeria nesta cidade que não é a minha.
É a primeira vez que venho a um cinema sozinha. O filme, nesse momento, é o que menos me importa. É o estar, o ver, ouvir, sentir, que me interessam nesse dia tão à parte, tão distante da minha rotineira realidade. É nestes momentos, em que me encontro sozinha e liberta, em um lugar até então desconhecido, mas com o qual aos poucos me familiarizo, que reforço minha certeza de que viajar é, para a mente, a experiência mais saudável que existe: mostra que a vida é muito mais do que aquilo que se apresenta no nosso dia-a-dia; que é possível se desligar, mesmo que temporariamente, das velhas imposições sempre iniciadas com as palavras ‘tem que...’.
Essa gostosa suspensão daquilo a que nos sujeitamos na cidade em que vivemos, ao nos colocarmos no espaço completamente novo, é imprescindível para a sanidade. Por mais que este meu ato de escrever sem enxergar minhas linhas, numa sala escura de cinema quase vazia, possa parecer insano, visto a olho nu.
Pouco me importa agora. Só torço para que eu não esteja atropelando minhas próprias palavras neste irreverente jogo de memória, concentração e equilíbrio caligráfico que me propus.
Talvez passe a limpo este texto para o seu (meu) caderno de impressões de viagens, Larissa – isso se eu conseguir entendê-las sob a luz acesa, assim que o filme terminar...”.

Porto Alegre, 05 de junho de 2010.

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Self-acts

me       escrevo          me       formo             me       busco              me       intento                me         sonho            me         vejo                 me       esqueço             me       faço                           me         forço              me        solto                 me          traio               me       perco                          me        fecho            me       expresso           me       insisto              me       sinto                  me     canso                 me       torno                  me       afogo              me       deixo                  me       espero                 me       lembro                  me       afino               me       vejo         me       ensino                me       crio                     me       iludo          me     confundo                      me       desgasto                me       encaro       me       espalho                    me       embaralho.                                                                

sábado, 9 de novembro de 2013

Rarefeito

Movimento de inspiração e expiração.

Inspira.
Expira.
Fluxo de ideias que correm de um corpo a outro.

O mundo bruto sendo inspirado para o pulmão - transformando-se em matéria nova.
A expiração de um torna-se inspiração para os outros,
em troca quase inconsciente.

O coletivo é isto: movimentos contínuos de in and out.

O coletivo respira -
e por vezes lhe falta o ar.

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Rendeiras

Apesar dos braços cansados, insistiu para continuar seguindo. 
Com o sol a lhe ofuscar a vista, 
os sons do dia em festa a se distanciarem, 
e o equlíbrio a manter-lhe em pé, 
seu corpo seguiu lagoa a dentro.

Sentada na rua diante da porta,
a velha rendeira só teve tempo de erguer levemente o braço,
em posição de aceno,
antes de vê-la render-se, e perder-se 
no horizonte do fim da tarde.

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Instante de livros

Para G.
 
Era dia. Calçou um dos chinelos no pé direito, calçou o outro no pé esquerdo, arrastou as cortinas, deixou que a cidade tomasse conta do seu apartamento, se arrastou ao banheiro, retornou, foi até a biblioteca – enquanto havia tempo. Não demoraria até que o alarme soasse, até que alguém o chamasse, até que os chinelos virassem um par de tênis rasgados, já tão acostumados com a rotina diária do metrô, ônibus, oitenta ouvintes, ônibus, setenta ouvintes, ônibus, metrô.... Mas antes que a cidade o engolisse, ali estava ela, ali estavam eles, diante dele: seus livros preciosos. Eram vários, alguns de capa dura, outros poucos resistentes, alguns de edição muito antiga, outros bastante recentes. Tinham todos algo em comum: eram livros preciosíssimos, traziam o que de melhor havia na literatura nacional e estrangeira, e de todos apenas as primeiras páginas haviam sido lidas. Faltava tempo para ler as restantes, e um homem precisava estar bem abastecido de tempo para gozar de leituras tão grandes. Era preciso dedicar-se somente a elas para lê-las da maneira correta. Então, no intervalo entre calçar os chinelos e substituí-los pelos tênis que suportavam seu dia, era na biblioteca que ele se refugiava –  em frente à estante onde, naquele instante, ele sentia um prazer estranho que misturava-se com felicidade. Sentia-se feliz por saber que o melhor ainda estava por vir. No metrô, lia coisas irrelevantes, reportagens de revistas, literatura de massa, aspirantes a bestsellers...  E seguiam-se os dias assim. O que lhe confortava era saber que algum dia – quando não houvesse metrô, ônibus, oitenta ou cento e tantos ouvintes – leria cada um destes livros preciosos, descobriria os seus prazeres, e seria uma pessoa inquestionavelmente, indubitavelmente feliz (e assim acreditou por muito tempo).

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

21:30, pensamentos

O borbulhar do oxigênio.
A respiração hesitante.
A troca de turno.
Colírio nos olhos: duas gostas no lado direito;
uma no lado esquerdo.
21:30.

O calor.
O frio.
Os olhos atentos.
A madrugada adentro.
A capela.
A ponte na janela.
O vento cortante,
Revigorante.

A vida.
A morte.
O dia que nasce.
A enfermidade.
O acalento - em vão.
Gibt es etwas besseres?

E então o almoço em família.
Mas falta.
Os risos pertubam.
Sobra galinha caipira na panela.

A amargura.
O sono.
O choro - tímido.

Outra vez a capela amarela,
A volta ao morro;
O pacote junto ao corpo
(Fraldas).

Balões.
Doces.
A barriga crescida.
Os muitos sorrisos com sincera alegria no salão.

As conversas.
O esquecimento.
A lembrança.
A música. 

A vida.
A vida!
O leito.
As fraldas:
Geriátricas, na ala Senhor dos Passos;
Infantis, no salão de festas alugado.

Na saída, o frio.
O café para esquentar a alma.
A vida dentro de mim.

Os ciclos.
As fraldas.
21:30.
Pensamentos.