domingo, 28 de agosto de 2016

O guarda-chuva


Fotografia: Guilherme Goes













Se caem alguns respingos,
todos já se armam
e se cruzam
sem se ver.
Vestem-no diariamente
e nem adianta dizer
que a corrente
intempestiva
não irá lhes desfazer.
Que integridade
ou medo
os impede de ver
que há gente,
sim,
há passos (curtos),
sonhos (largos),
vozes distoantes,
há vida, sim,
e paredes gastas
pintadas 
com cores de fuga
de pássaro que alça vôo,
enquanto a maioria, embaixo,
não tem asas
e buscam, alguns, a troca de olhar
esbarrada
em um guarda-chuva
na calçada urbana.
Seguem
as pessoas
de guarda-chuva invisível
mesmo nos dias de sol
que os prédios talvez
escondam.

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

Cruzei as ruas do centro da cidade à procura de papel e caneta



Cruzei as ruas do centro da minha cidade à procura de papel e caneta, deixando o suspense de Orson Welles no 1º andar para viver meus dramas aqui na varanda desse casarão que é meu refúgio no meio das quadras de trânsito ininterrupto. Piso nesse solo de ilha, atravesso ruas junto aos outros, meus conterrâneos ou estranhos, nesse pequeno labirinto que penso conhecer bem e que já tanto percorri. Sou cidade, coleção de memórias. Às vezes atravesso no sinal vermelho, outras hesito no sinal verde e páro na esquina – lugar de encontro. E penso em quantos encontros e desencontros já me proporcionei por essas ruas. Quantas vezes saí à procura do que não encontrei e algumas que encontrei o que não esperava. Nesse chão de mosaico onde piso compartilhei risos e alguns sonhos. Avisto em frente a parede branca do Florianópolis Palace Hotel, grandiosa medianera onde caberia uma janela. Mas seus moradores estão de passagem e não lhes vêm à cabeça fazer tal coisa. Filmes projetados nessa parede já outras vezes serviram de janela pro desconhecido. Mais cedo, nas várias partes desse centro da cidade, vi vendedores fechando com a esteira suas tardes de (des)esperança ou recolhendo suas trouxas estendidas na rua de pedestres. Vi vasos no parapeito das janelas dos edifícios, ambulâncias urgenciando desvios, senhoras e jovens preparando as aparências nos salões de beleza, andarilhos vivendo a sua maneira, igrejas professando hipocrisias, transeuntes coletando dívidas, amigos trocando afetos e alívios na mesa dos bares de rua – é cedo e faz tempo bom. Há miradas que me seguem e outras não. Andei pelas ruas parte no presente, parte em outros lugares temporais que vagam na minha mente por esse mesmo espaço. Quantos ecos reverberam nesse mapa geográfico. Escolhi meu caminho, traçando rotas conhecidas. Subi escadas em frente à igreja onde meus pais se casaram e agora insinuam separar. Passei pelo hotel em que um amigo distante de correspondências um dia se hospedou e eu o busquei de fusca para uma noite incrível. Nessa mesma rua, o prédio onde guardo lembranças do 4º andar e depois do 3º andar, ainda tão recentes, junto àqueles com quem minha alma não conseguiu conectar. Lembro de imagens do edifício à frente, a mulher com insônia e TV ligada aos finais de semana, as brigas e reconciliações de vizinhos, o aceno simpático de alguém que não lembro o rosto. Aquele em que mais me aprofundei já viveu por ali também, e fez loucuras nessa cidade em tempos que não participei. A cidade não pára e enquanto isso as nossas vidas também não. Precisei voltar aqui e me encontrar com esse papel,  com a Stela Artois do café da esquina, comigo de alguma forma. E não adianta esperar por qualquer chamado, qualquer “busca do inesperado”, a alma precisa acalmar. Alguns pássaros aqui ainda cantam celebrando o início da noite em fios de eletricidade que nos conectam e teimam em me desorientar. Penso nos moradores desse centro, centrados em suas casas, onde há banheiros e salas de estar, cada um com um ponto de vista, formando um mosaico coletivo impossível de juntar. No reflexo do prédio público na minha frente ainda vejo árvores, lembrando que sou vida e resisto e que minhas folhas sempre se renovam. Não sei o quanto já finquei meus pés nessa cidade e se algum dia sequer os retirarei. O centro de mim é disperso, nesse vento frio encerro estes versos e volto a trafegar.