segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Instante de livros

Para G.
 
Era dia. Calçou um dos chinelos no pé direito, calçou o outro no pé esquerdo, arrastou as cortinas, deixou que a cidade tomasse conta do seu apartamento, se arrastou ao banheiro, retornou, foi até a biblioteca – enquanto havia tempo. Não demoraria até que o alarme soasse, até que alguém o chamasse, até que os chinelos virassem um par de tênis rasgados, já tão acostumados com a rotina diária do metrô, ônibus, oitenta ouvintes, ônibus, setenta ouvintes, ônibus, metrô.... Mas antes que a cidade o engolisse, ali estava ela, ali estavam eles, diante dele: seus livros preciosos. Eram vários, alguns de capa dura, outros poucos resistentes, alguns de edição muito antiga, outros bastante recentes. Tinham todos algo em comum: eram livros preciosíssimos, traziam o que de melhor havia na literatura nacional e estrangeira, e de todos apenas as primeiras páginas haviam sido lidas. Faltava tempo para ler as restantes, e um homem precisava estar bem abastecido de tempo para gozar de leituras tão grandes. Era preciso dedicar-se somente a elas para lê-las da maneira correta. Então, no intervalo entre calçar os chinelos e substituí-los pelos tênis que suportavam seu dia, era na biblioteca que ele se refugiava –  em frente à estante onde, naquele instante, ele sentia um prazer estranho que misturava-se com felicidade. Sentia-se feliz por saber que o melhor ainda estava por vir. No metrô, lia coisas irrelevantes, reportagens de revistas, literatura de massa, aspirantes a bestsellers...  E seguiam-se os dias assim. O que lhe confortava era saber que algum dia – quando não houvesse metrô, ônibus, oitenta ou cento e tantos ouvintes – leria cada um destes livros preciosos, descobriria os seus prazeres, e seria uma pessoa inquestionavelmente, indubitavelmente feliz (e assim acreditou por muito tempo).

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