Instante de livros
Para G.
Era dia. Calçou um dos chinelos no pé direito, calçou
o outro no pé esquerdo, arrastou as cortinas, deixou que a cidade tomasse conta
do seu apartamento, se arrastou ao banheiro, retornou, foi até a biblioteca –
enquanto havia tempo. Não demoraria até que o alarme soasse, até que alguém o
chamasse, até que os chinelos virassem um par de tênis rasgados, já tão
acostumados com a rotina diária do metrô, ônibus, oitenta ouvintes, ônibus,
setenta ouvintes, ônibus, metrô.... Mas antes que a cidade o engolisse, ali
estava ela, ali estavam eles, diante dele: seus livros preciosos. Eram vários,
alguns de capa dura, outros poucos resistentes, alguns de edição muito antiga,
outros bastante recentes. Tinham todos algo em comum: eram livros preciosíssimos,
traziam o que de melhor havia na literatura nacional e estrangeira, e de todos
apenas as primeiras páginas haviam sido lidas. Faltava tempo para ler as
restantes, e um homem precisava estar bem abastecido de tempo para gozar de
leituras tão grandes. Era preciso dedicar-se somente a elas para
lê-las da maneira correta. Então, no intervalo entre calçar os chinelos e substituí-los
pelos tênis que suportavam seu dia, era na biblioteca que ele se refugiava
– em frente à estante onde, naquele
instante, ele sentia um prazer estranho que misturava-se com felicidade. Sentia-se
feliz por saber que o melhor ainda estava por vir. No metrô, lia coisas
irrelevantes, reportagens de revistas, literatura de massa, aspirantes a bestsellers... E seguiam-se os dias assim. O que lhe
confortava era saber que algum dia – quando não houvesse metrô, ônibus, oitenta
ou cento e tantos ouvintes – leria cada um destes livros preciosos, descobriria
os seus prazeres, e seria uma pessoa inquestionavelmente, indubitavelmente
feliz (e assim acreditou por muito tempo).
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